A vida é curiosa. Sou filha de uma ‘fada do lar’ que sabia fazer (e bem) tudo aquilo que as mulheres da sua geração não compravam fora. Quer porque a oferta era muito menor, quer porque a disponibilidade de compra também não era grande. E havia uma cultura do ‘fazer em casa’, do ‘aproveitar’ e ‘remendar’, maximizando os recursos que eram escassos. Tive imensas oportunidades de aprendizagem, que desperdicei. Andei literalmente a fugir da agulha e do entendimento do mundo a ela associado e, só agora começo a entender.
Tive que me fartar da cultura do consumismo, do ‘compra e deita fora’ descartável, para entender a magia do remendo e do conserto, agora embrulhado num entendimento (alguns dizem moda) de sustentabilidade, de teoria filosófica Japonesa que advoga a anti perfeição e considera a ruptura e o remendo como parte da história de um objecto; de outras formas de nos relacionarmos com o mundo dos objectos; de novas formas de reutilizar; também como forma de activismo ambientalista; e no meu caso, talvez acima de tudo, como forma de entender que as coisas e as relações entre as pessoas podem ter muitas novas oportunidades, até concluirmos que chegou o fim de vida.
Continuo com fraco jeito para a agulha e ainda não consegui aprender a trabalhar com a máquina de costura, mas tenho isso em meta. O que eu já consigo é entender. Entendo a importância destas coisas – de reutilizar, de remendar, de assumir imperfeições e de achar bonito que pessoas façam isso consigo, com os outros e com as coisas. Mais do que coisas velhas remendadas ou relações recuperadas o que existe mesmo é a possibilidade gigante de aceitar – e é tão difícil aceitar, de transformar em algo diferente, de reinventar. Assim como contar histórias é uma inevitabilidade. Faz parte de sermos humanos e das nossas culturas e sociabilidades. As coisas têm histórias como as pessoas têm histórias. E contam-nas de muitas maneiras diferentes.
Tudo isto a propósito desta época cheia de boas intenções e gestos nobres mas que, em muitos casos, acaba atulhada em consumo com prestações para o ano todo e sacos de lixo de fim de festa. Cada um saberá de si… Para mim, cada vez mais, celebrar (o Natal, o Ano Novo ou qualquer outro pretexto) é estar junto, contar histórias e ir remendando o que estiver por remendar, com criatividade e amor.
Acho que a nossa humanidade precisa de muito conserto.
Isabel Passarinho