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Crónica Social - Se pudesse hibernava


Pode não ser original mas juro que era uma opção. Procurava uma toca abrigada e adormecia. Dormia muito, muito, muito mesmo até um dia soalheiro e quente em que era bom acordar.


De certa forma faço qualquer coisa próxima de hibernar[1] nestes tempos de inverno. Entro em modo de sobrevivência, já não porque a alimentação seja escassa mas porque não tenho força anímica para mais do que o estritamente obrigatório. Lentifico-me. Reduzo drasticamente interesses e afazeres, deixo de ler, de escrever, de ir a exposições e a teatros, de passear, de começar coisas, de ter vontade de estar com outras pessoas. Não me apetece falar nem ouvir, nem rir, nem chorar. Não avanço nos livros marcados e empilhados nem compro o jornal. Fico muito mais vulnerável a coisas que deslinguam a cabeça como séries, Mahjong e telenovelas, entre outras. E não estou deprimida. Só estou tão hibernada quanto consigo.


Não sei se o Damásio ajudou. Estranho ainda a ideia de todos sermos parte de uma unidade só. Parece que ao nível celular a diferença social, ideológica, de (des)afectos e conveniências se esbate.


“De um modo simples, a região de improbabilidade chamada «vida», quer ao nível das humildes células – com e sem núcleo - quer ao nível de grandes organismos multicelulares tais comos os seres humanos, pode ser definida por estas duas características: a capacidade de regular a sua vida, mantendo as estruturas e as operações internas durante tanto tempo quanto possível, e a possibilidade de se reproduzir e de tentar alcançar a perpetuidade. É como se, de um modo extraordinário, cada um de nós, cada célula de nós, e todas as células que existem, fizessem parte de um único organismo, gigante e superabrangente, que teve início há 3,8 mil milhões de anos e continua a existir” Damásio, 2017:63.


Andava a ler a Estranha Ordem das Coisas [2] quando enjoei a leitura. Não foi bem o livro. Foi de repente não ter vontade de elaborar, de ter pensamentos pensados (como dizia uma criança que conheci) … querer congelar, não ter que lidar com os sentimentos, querer ser uma bactéria homeostática que persiste apenas por imperativos de sobrevivência. Diz o Damásio que o processo de homeostasia é um processo de gestão de energia. Mas nesta gestão de energia, seguramente que a hibernação também cumpre uma função equilibrante. Para os bichos que o fazem é uma condição de sobrevivência. Suponho que para mim também será. Seria.


Por mais que seja só ‘meia hibernação’ e se mantenham as funcionalidades exigidas sem lá por quem, sei lá porquê, desliga-se o pensamento, baixa-se ao mínimo o raciocínio, a tomada de decisões e a imaginação … e talvez mais à frente, num outro ponto da estrada, se consiga voltar.




Isabel Passarinho

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[1] Hibernar é um verbo intransitivo da língua portuguesa e significa um estado ou condição de ociosidade, desocupação ou quando a atividade metabólica corporal diminui drasticamente, fazendo o corpo entrar em estado de entorpecimento.


[2] Damásio, A. (2017). A estranha ordem das coisas – a vida, os sentimentos e as culturas humanas. Ed. Circulo dos Leitores, Lisboa

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