Esta foi a terceira peregrenição, depois dos percursos de Ponte de Lima a Santiago pelo Caminho Português (2013) e de Caminha a Santiago pelo Caminho da Costa (2016).
No caso a experiência serviu para insistir no que tinha resultado e conseguir ir. Sem grandes preparativos numa fase da vida com bastante cansaço.
Porque é que fazes isto? – é ainda a pergunta de alguns amigos e conhecidos.
Por difícil que possa parecer as motivações são espirituais e de bem-estar (i) testar o corpo, os sentidos e a reacção ao novo, diminuindo os automatismos que vou criando no dia-a-dia; (ii) limpar a cabeça de toxicidade acumulada; (iii) tomar consciência e renovar as minhas fontes de bem-estar e equilíbrio. É uma espécie de ‘SPA andarilho’ que justifica plenamente os 10 dias de férias que reservo e os 300 e tal euros que gasto.
A cadeia de opções não se esgota no planeamento e sendo o percurso menos longo e exigente do que os anteriores, não me preocupei com muitos detalhes.
Fiz o caminho com uma amiga e também por isso deixei algumas opções para tomar em conjunto – ficar um dia-almofada em Santiago e outro em Finisterra e utilizar o serviço de transporte de mochilas dos Correios (que é barato e de extraordinária qualidade).
Também precisei de me livrar da ideia de que ‘caminhar sem mochila não é de peregrina’ e ´deixar ir’. Deixar ir o preconceito, a mochila e outras coisas que me ocupam espaço interno.
O Caminho de Finisterra (Fisterra em Galego) é o único dos Caminhos que começa em Santiago. Outra singularidade deste Caminho surge da sua ancestralidade e das lendas que lhe estão associadas – consta que já era percorrido por povos Fenícios que faziam o culto ao Sol, por Celtas que situavam a vida depois da morte numa ilha do ocidente e depois por Romanos que também o associavam ao renascer da vida.
A partir do século XIV conta a lenda que num barco em dificuldades foi atirada ao mar uma caixa com a imagem de Cristo. Achada em terra por pescadores, deu início a uma grande devoção pelo Santo Cristo de Finisterra centrada na ressurreição e que atinge o seu auge na semana santa.
Lendas à parte esta é a breve história da peregrinação realizada em Outubro de 2017 ao longo de 100 e tal kms (a contagem dos Km varia conforme as fontes) em 5 etapas: (1) de Santiago a Negreira - 21km; (2) de Negreira a Sta. Marina/Casa Pepa - 24Km; (3) de Sta. Marina a Hospital/Castelino - 18km; (4) de Hospital a Cee - 15Km; (5) de Cee a Finisterra - 18km.
A tradição manda que os peregrinos façam 3 rituais quando chegam a Finisterra - (i) tomar banho na praia da Langosteira (ii) Ver o pôr-do-sol (iii) e queimar roupas/calçado utilizado no caminho.
Confesso que não fiz o terceiro ritual mas como insisti nos dois primeiros deve estar tudo bem.
Intermitências do partir
Conjugar o verbo ‘ir’ tem as suas exigências.
Realizei que iria fazer o Caminho dois dias antes de partir e fiquei entusiasmada, a par com aquela sensação de medo com um friozinho na barriga.
Antes recolho informação mínima sobre o percurso, os albergues e os transportes e planifico um pouco. Peço uma mochila emprestada e encho-a de véspera. Não fiz qualquer preparação física e estou bastante cansada.
No sábado de manhã cedo (dia 30 de Setembro) apanho em Sete Rios o Expresso para o Porto. A circulação por auto-estrada é pouco interessante e a pista-de-aceleração desprende o olhar. Chegada ao Campo 24 de Agosto no Porto, vou de Andante até à Casa da Música. Encontro a minha companheira de viagem e ainda consigo dar um abraço ao meu filho mais novo e à sua namorada que vão ter comigo um minuto antes da camioneta partir para Santiago.
Faço a viagem à conversa com a minha amiga, percebemos a paragem em Braga e depois só damos conta quando parámos em Tui e mais tarde em Vigo. Chegámos a Santiago às 18h. Fomos a pé até ao albergue do Seminário Menor (que é gigante), instalámo-nos em quartos colectivos separados e fomos jantar à cidade velha. Às 22h já estávamos deitadas.
Tínhamos decidido ficar no domingo em Santiago.
Domingo amanheceu com uma chuva miudinha. Levantamo-nos cedo (o check out no albergue é até às 8,30h mesmo que se fique mais noites), demos entrada de outra noite, tomámos o pequeno-almoço e fomos para o centro da cidade.
Fomos ao turismo pedir informações – ainda não tínhamos fechado o percurso – e aos correios tratar da expedição das mochilas – por 20€ fizeram o transporte da mochila em todas as etapas com um serviço personalizado e muito bom.
Fomos à missa do peregrino (sempre ao meio-dia) que tem um ritual interessante e ecuménico. Seguimos depois para a rua de S. Paulo onde almoçamos num belo restaurante. O ‘Dezasseis’ estava fechado, mas optámos pelo ‘Amolador’ e ficámos muito bem servidas – comi uma das melhores carnes de porco preto e bebi um café ‘batido’ que me transportou a memórias antigas do cheiro ao café que a minha mãe fazia.
De seguida fomos a pé até à Cidade da Cultura num percurso de ida e volta que rondou os 15 km. Goiás está construído no monte em frente à cidade de Santiago, numa antiga pedreira e é uma obra gigantesca e inovadora (faraónica para alguns). Centro de arte moderna, biblioteca e mais uns quantos serviços. Visitámos gratuitamente 3 exposições bastante interessantes. A preferida chamava-se ‘Da árvore à cadeira’ e fazia um percurso desde os bosques da Galiza, passando pelos cortes das árvores e o ofício artístico de trabalhar a madeira – inevitável recordar o meu pai e a sua paixão por este trabalho.
Jantámos no albergue e ficámos à conversa na noite estrelada da escadaria do Seminário menor.
Etapa 1 - O Mapa e o Território
Na segunda-feira posemo-nos a caminho da primeira etapa de 22 km até Negreira, com o pequeno-almoço tomado e leves de carrego. Por volta das 9h passámos o centro da cidade, a Praça do Obradoiro em frente à Catedral e saímos pela rua das Hortas.
Um carreiro leva-nos para fora da cidade em direcção ao rio Sar. Percorremos os montes que rodeiam Santiago numa paisagem verdejante e muito bonita e atravessamos a velha ponte românica de Ponte Maceira. Serpenteando o rio, caminhamos por frescos bosques de folhosas, com cheiros maravilhosos – avistei um esquilo que se cruzou connosco por breves instantes.
Fizemos uns bons quilómetros à conversa com o Manuel, um galego de Santiago que já tinha feito o caminho francês e estava pela primeira vez a fazer o de Finisterra. Falámos de política, da situação da Catalunha, do orgulho que sentia pela beleza de Ponte Maceira, do rio que levava muito pouca água, do ponto mais alto da etapa que o mapa dizia chamar-se ‘Mar de Ovelhas’ e que nós não encontrámos nem a designação em tabuleta nem as ovelhas, dos cestos com fruta nos portões das quintas e das casas para oferta aos peregrinos,…
Chegámos por volta das 16h a Negreira – não conseguimos saber a origem do nome- e ficámos no albergue ‘Alecrim’ para onde tinham seguido as mochilas. Instalamo-nos nos beliches (já só havia vaga em camas altas) para descansar, tomámos banho e fomos lavar umas peças de roupa antes de sair para jantar. A vila é pouco interessante mas descobrimos um café-restaurante com esplanada e comemos um menú de peregrino a um preço razoável (8€).
De regresso ao albergue, ainda ficamos na esplanada a fumar um cigarro e a conversar com o Manuel. Não o voltaríamos a ver.
É impressionante como me adapto e como é possível uma boa noite de sono, mesmo que exista um grupo de italianos a fazer uma chinfrineira na cozinha comunitária, mesmo que as luzes estivessem sempre a apagar e acender e mesmo que se ouvisse a ida à casa de banho de outros peregrinos. Na manhã de terça fomos as últimas a sair, por volta das 9h, com pequeno-almoço e café tomado; e com tempo ainda para uma interessante conversa com o dono do albergue – de facto o caminho é vida e todos estes pormenores contam.
Nesta etapa encontrámos (como já sabemos que é próprio do Caminho) pessoas de muitas idades, nacionalidades e condições. Quase inevitavelmente as perguntas que seguem a saudação ‘bom camino’ são ‘como te chamas?’, ‘de onde vens?’ e ‘porque fazes o camino?’… E por mais que se pesquise em mapas, descrições das etapas e testemunhos de outros peregrinos, cada caminho é pessoal e intransmissível.
O território é muito maior, mais pormenorizado e rico de sensações do que qualquer mapa.
Etapa 2 - Gratidão
No segundo dia fizemos a etapa mais longa e que considerei mais difícil até à Casa Pepa, em Santa Marina. A saída de Negreira revelou-se mais interessante do que o troço que conhecêramos antes e vimos um monumento à emigração que nos tocou, lembrando a poesia de Rosália de Castro.
O primeiro troço foi fantástico, fizemos a nossa sessão de Yoga num sítio bonito e seguimos por bosques maravilhosos ao lado de um rio, subidas suaves e era tudo tão belo que fomos conversando, quase a passo de passeio. Falámos sobre as nossas diferentes ‘camadas’, sobre os que partiram, sobre a conversa da manhã com o Sr. do albergue, sobre o sofisticado sistema de conexão que liga os cogumelos na floresta, sobre a gratidão por tudo aquilo que nos é dado – nesta imersão na natureza percebe-se que o que nos é essencial de facto é-nos dado (ar, água, comida, …) e muitas vezes nem percebemos, nem damos valor.
Depois a paisagem muda e passamos a andar na Galiza rural das explorações agro-pecuárias, em que dois terços do caminho foram por montes e vales com um cheiro imenso a bosta e húmus, vindo destas unidades e da fertilização da terra.
Almoçámos uma sandes e uma sopa na aldeia de Pena, a meio caminho. Estivemos aí à conversa com um peregrino, ainda jovem, que vinha de Irún e viajava desde 24 de Agosto, já não sabia há quanto tempo. Não tive coragem de lhe perguntar porque o fazia.
Chegámos muito cansadas à Casa Pepa, depois de nos últimos quilómetros atravessarmos várias aldeias e acharmos que seria em cada uma delas o albergue que procurávamos.
A Casa Pepa era uma casa tradicional recuperada com fundos comunitários e que era gerida por um casal aldeão de meia-idade. Na esplanada com uma bela latada já descansavam vários peregrinos. Juntámo-nos a eles, depois de nos instalarmos e comemos por lá uma bela tortilha de batata.
Deitamo-nos cedo. Apesar do cansaço a noite foi mal dormida, com uma inexplicável insónia em luta com uma cama que rangia.
Etapa 3 - Cães-Esfinge
De manhã a saída do albergue foi um bocado atrapalhada e demorada.
Inicialmente achámos que faríamos uma etapa de 30 e tal km até Cee mas agora sentíamo-nos cansadas e mudámos a logística da entrega das mochilas para encurtar a etapa para cerca de 18 km e ficar em Hospital. Entre telefonemas e a necessidade de dar tempo à cabeça para se sintonizar depois de uma má noite de sono, demorámos a sair.
Mas o tempo contínua de encomenda, com manhãs enevoadas e frescas, sem vento e uma temperatura quente e amena ao longo do dia.
Começamos a caminhar quase às 10h por campos agrícolas sem fim. Cultura intensiva de milho e forragem para os animais, estradas municipais sem trânsito, vias romanas e uma paisagem que se torna progressivamente mais atlântica. Aldeias deprimidas, desertificadas e sem abastecimento. Marcas da emigração nas casas e o negócio alimentado pelos peregrinos a ser provavelmente a única fonte de rendimento de alguns locais. O grande lago da Galiza (o Enbalse de Fervenza) que apareceu no horizonte, depois de camadas e camadas de serras que nunca mais deixavam adivinhar a costa. Num dos pontos tomámos uma via alternativa e custou-me imenso fazer uns bons quilómetros (que me pareceram intermináveis) em terra batida num caminho sempre a direito, que só subia e descia conforme o relevo.
Em Oliveiroa fizemos uma paragem para almoçar num sítio muito simpático com albergue. Seguimos caminho e um pouco mais à frente, ainda em Oliveiroa, descobrimos um restaurante tradicional chamado Pias. Não resistimos a entrar, seduzidas pela recuperação do edificado antigo, pelas peças artísticas que estavam um pouco por todo o lado e pela simpatia de uma jovem empregada ruiva a quem pedimos um café e uma deliciosa sobremesa que ela garantia ser feita com os ovos das galinhas da aldeia e uma receita tradicional. Saímos de lá restabelecidas e com energia para mais uns bons quilómetros. Uma das curiosidades desta etapa (nunca me tinha acontecido antes) foi ter passado em várias aldeias por cães enormes, soltos, que não se mexiam à nossa passagem; não ladravam, nem sequer olhavam, como se estivessem treinados para ignorar os peregrinos - Indiferentes e meditativos, pareciam autênticas esfinges.
Na chegada à aldeia de Hospital, a Marina recebe-nos no grande restaurante de beira de estrada e leva-nos no seu carro até ao albergue local, que é a casa de família do marido recuperada para este fim. À hora combinada voltará para nos ir buscar para jantarmos no seu restaurante e volta a levarmos ao albergue. Ex-emigrante gere o seu ‘Castelino’ como uma rainha de uma aldeia onde ninguém fica. Nesta etapa em particular nenhuma de nós quer acreditar que fizemos menos de 20 km. O cansaço fez-se sentir, fizemos muitas paragens e os pés da minha amiga ressentem-se.
Tememos que não aguentem outra etapa.
Etapa 4 - ‘Pinchos’[1]em Cee
Os pés da minha amiga melhoraram mas não o suficiente para aguentar mais uma etapa. Depois de uma noite bem dormida e de tomarmos o pequeno-almoço no ‘Castelino’, ela tomou nota do número do táxi de Cee e começamos o caminho. A minha amiga em dilema, porque tomar a decisão de desistir não é fácil.
Um pouco depois da opção tomada por Finisterra pela esquerda (em detrimento da possibilidade de seguir pela direita para o Norte, por Dumbria e Muxia) a minha amiga decidiu voltar à estrada e chamar o táxi para ir ao centro de saúde em Cee. Estava uma manhã de nevoeiro e segui sozinha por uma etapa que sabia não passar por aldeias. Porque no Caminho é assim, cada pessoa faz o seu caminho.
Ao princípio estranhei, tive medo, os barulhos, o olhar para trás sem ver vivalma, solidão. Progressivamente ganhei confiança, apreciei a paisagem, os caminhos entre muros de pedra e outros mais abertos, gostei do cruzeiro e do santuário da Senhora das Neves, encontrei outros peregrinos, o nevoeiro levantou e foi uma das etapas mais bonitas e suaves do Caminho, onde finalmente se avista o mar – liguei a uma sobrinha para partilhar a alegria de avistar o mar e recebi um telefonema de um dos meus filhos a perguntar ‘como estás, mãe?’. Nestes 15 km estes mimos fizeram diferença. Mais ainda quando se está sozinha, temos tabaco mas não temos isqueiro e nenhum peregrino por quem passamos, fuma. Enfim, controlar estes percalços também faz parte do caminho.
A descida para Cee é muito acentuada, mas por volta das 13h já estava no albergue Monteiro, mesmo virado para a baia da simpática vila piscatória, com um passado de pesca à baleia. A minha amiga tinha acabado de chegar, agradada com o atendimento na consulta e tratamento aos pés e com a prescrição de descansar durante o resto do dia.
Apanhei boleia e dormi uma bela sesta. Depois de ambas estarmos retemperadas demos uma volta pelo centro da vila e celebrámos com uma taça de vinho e uns excelentes ‘pinchos’ oferecidos pelo café central – por aqui fazem gala desta oferta simpática e generosa.
Mais tarde comemos no albergue uma boa refeição feita com produtos locais e dormimos cedo.
Tive uma noite agitada, às voltas com muita coisa à tona.
Nem sei dizer bem o quê mas passei vários ‘filmes’ na minha cabeça. Como se os assuntos difíceis que levava comigo andassem em ebulição…
Etapa 5 – o Pôr-do-sol em Fisterra
Despertador para as 8h, pequeno almoço na cozinha comunitária do albergue em conjunto com vários peregrinos jovens, ensonados e fechados nos seus pensamentos. Um dos peregrinos sai para o Caminho e diz no castelhano internacional que se fala por estas bandas ‘Que caras tristes,companheiros! Alegria e Bom camino!’.
Esta etapa é descrita como tendo dificuldade alta mas a mim não me pareceu. Saimos pela fresca e fizemos com tranquilidade os 2 km pela costa até à próxima vila de Corcubión - terra antiga e com casas bem conservadas, muito mais bonita do que Cee. A partir daqui o caminho é sempre a subir, por matas e campos agricolas e depois só por matas autóctones. Paramos numa bela praia para fazer a nossa sessão diária de Yoga e voltamos a subir para os montes. Finisterra deixa-se finalmente ver num mirador fantástico, a cerca de 2km de uma descida acentuada até à praia da Langosteira – um extenso areal quase deserto na grande baia que antecede a vila da Finisterra. Mar chão e céu de um azul limpido que não deixa adivinhar os rigores e bravuras da Costa da Morte.
Chegadas à praia por volta das 13h, comemos qualquer coisa num bar simpático e tomámos coragem para um banho nas águas transparentes. Custou a entrar mas valeu a pena porque foi absolutamente retemperador. O ritual cumpriu-se e à medida que iam chegando outros peregrinos iam ao banho-baptimo, com trajes improvisados e uns gritos de alegria e superação.
Passado um bom tempo de banho e secagem, posemo-nos a caminho até à Vila.
O atravessamento de Finisterra foi apressado porque a vila cresceu sem beleza, com excepção da zona velha do porto. Encontramos o albergue (para onde tinham ido as mochilas) eram 5h da tarde e eu estava cozida com calor. Depois de nos instalarmos, descansei um pouco, tomei um duche, fiz uma máquina de roupa e passado pouco mais de uma hora estávamos a sair para dar uma volta de reconhecimento pela parte velha. Tomámos uma bebida no porto e posemo-nos a caminho do Farol para ver o por-do-sol.
São 2,5km sempre a subir e outros tantos para baixo, num caminho estreito ao lado da estrada e rente à escarpa florestada que nos leva até ao farol.
Os peregrinos (e os turistas) não perdem este ritual e juntam-se no topo, junto do Farol ou mais acima, espalhados pelas enormes pedras. Um grupo de alemães adolescentes acompanhados por alguns adultos fizeram uma missa campal muito bonita ao nosso lado. Outros peregrinos lançavam fogo às botas e captavam a imagem com o telemóvel. Outros, só contemplavam, sózinhos ou em pequenos grupos, o magifico por-de-sol: gigante, luminoso, lento, sem sombra de vento. Fiquei ali em silêncio, fascinada com aquela grandeza, a ver esconder-se a enorme bola de fogo, a agradecer o caminho até aqui e a acreditar que amanhã seremos presenteadas com um novo dia. Descemos com passo apressado quando a noite estava já a cair e o vento começava a levantar-se. Jantámos num restaurante da vila com peixe fresquissimo e conversámos sobre a vida.
Na volta ao albergue estava uma imensa lua cheia refletida nas águas mansas do porto. E eu dormi a melhor noite do Caminho.
Trocas e baldrocas
O dia foi de picos emocionais. Imprevistos, decisões a tomar, trapalhadas, descanso, assuntos difíceis e angustias várias. Como se a turbulência da vida tivesse vindo cobrar o intervalo.
Acordei descansada. Ontem tinhamos decidido não fazer as duas últimas etapas planeadas e ir até Muxia de autocarro, seguindo depois de lá até Santiago. Tomamos o pequeno almoço no albergue com um coreano simpático, depachámos as mochilas e antes de sairmos pedimos o horário dos autocarros. Afinal, era sábado, e percebemos que não havia ligação rodoviária para Muxia.
Ainda pensámos ir à boleia mas imperou o bom senso e mais uma vez contactámos os correios para pedir as mochilas de volta e ficar em Finisterra. Assim foi, passado um tempo trouxeram a bagagem, fomos reservar mais uma noite no mesmo albergue e podemos gozar o resto do dia de descanso.Estava um tempo de Verão e, com todas estas alterações, já tinha passado a manhã. Fomos comprar uns ‘recuerdos’ para levar para familia e amigos e decidimos aproveitar o resto do dia na praia.
Estava maré baixa, com muitas algas e conchas na praia e uma água menos transparente do que no dia anterior, a fazer adivinhar um mar muito mais profundo e revolto do que aparentava. Apanhei conchas, sol e banhos de mar; quando o sol estava a pique, fomos para a esplanada do restaurante ‘Centoulo’ comer uns belos mexilhões. Voltámos à praia e pela tarde fomos para o albergue tomar um duche e mudar de roupa. Seguimos depois para mais um por-do-sol na praia do Mar de Fora, no outro lado da peninsula de Finisterra - um belo percurso e uma praia linda, com mar mais batido mas ainda sem mostrar a bravura característica desta Costa.
Durante a contemplação do por-do-sol uma chamada (que eu atendi) veio impôr dilemas e colocar a necessidade de uma conversa difícil. A conversa perturbou-me e fiquei tensa.
Cumpri o ritual mas lá se foi a pretendida paz do momento.
Ao jantar, numa esplanada do porto, conversámos e partilhámos mágoas, sofrimentos, recursos, ‘armadilhas’ e alentos – texturas emocionalmente densas que não desaparecem com caminhadas. Mesmo em fases maduras, a vida continua sem manual. Suave ou crispada, vai impondo desafios de manejo e aprendizagem dificeis.
Para terminar o dia em stress, démos conta de que os transportes rodoviários de Santiago para Portugal estavam esgotados atè à próxima terça-feira. Ainda que ambas tenhamos um registo de flexibilidade com as questões de planeamento, já começávamos a achar imprevisto demais…
Regresso
Nove dias depois de sair de casa, estou de regresso num domingo que começa em Finisterra e termina em Lisboa, com chegada à Gare do Oriente às duas e tal da manhã de segunda-feira. Foi uma viagem com algum stress, cansaço e em navegação à vista.
De Finisterra a Santiago foram 2 horas e meia de autocarro por estradas novas que não deixam adivinhar os caminhos percorridos pelos montes, vales e aldeias desertificadas. Como se durante o Caminho tivessemos transposto um portal secreto de um outro tempo. Chegadas a Santiago tivemos a certeza de que não havia ligação rodoviária disponível para Portugal, estava tudo esgotado – um fim de semana prolongado e o bom tempo tinham aumentado o fluxo de viajantes. Tomámos taxi para a estação ferroviária e traçamos o plano possível: vamos para Vigo, temos uma espera de 6h nesta cidade porque o comboio Celta para Portugal só parte às 20h, a minha amiga fica em Braga e eu apanho o último Expresso para Lisboa que sai às 22,30h do Porto.
De Santiago para Vigo-Urzar a viagem é rápida e tem padrões europeus - às 12,30h sai o comboio e uma hora depois chegamos à cidade. Perguntamos e atravessamos a pé a distância que separa as duas estações, em direção a Vigo-Guixar. Pelo caminho, vamos apreciando a cidade e as gentes embora esta zona não seja particularmente interessante. Gostámos de uma tasca citadina (o nome ‘Pepe’ era menos original do que a decoração) com uma ementa sugestiva a preços interessantes e demoramo-nos no almoço: salada de fumados com filetes de bacalhau em cama de tomate, rematado por uma sobremesa de tarte de queijo com gelado de framboesa. Dos deuses.
Ficamos a ler o jornal ´Publico’ lá do sitio, em particular um artigo sobre a transversabilidade identitária do novo Nobel, Kasuo Ishiguro. Seguimos para a estação, onde ainda esperámos.
De Vigo para o Porto a viagem é feita num comboio de outra época. Ser de noite torna tudo ainda menos interessante. Um comboio apinhado, sem espaço para bagagens, que ronca de maneira constrangedora e que não tem qualquer indicação do percurso ou das estações. Como as estações também não estão iluminadas e não se vê nada para fora, fica assim uma espécie de viagem no espaço, em modo vintage. Interessantes foram as conversas de outros peregrinos, com notas de bom humor e muitas histórias para contar. Enfim, a minha amiga sempre conseguiu sair em Braga e eu no Porto. Faço a ligação de metro até à estação rodoviária e chego por volta das 21,30h. O autocarro está cheio e dizem que vão fazer uma ligação extraordinária às 23,30h, com ida para a Gare do Oriente. Cansada, não tenho outro remédio senão esperar. A estação da rodoviária ainda tem movimento de viajantes mas também de outras pessoas que deambulam ou que ficam sentadas à entrada.Oiço a conversa de um jovem que pede dinheiro e conta uma história triste a um senhor que o ouve com atenção e lhe faz perguntas. Falo ao telefone com amigas para pedir o favor de me irem buscar. Compro um chocolate na máquina. Tento comprar tabaco nas imediações mas não existem cafés abertos. Tento manter-me acordada para não perdir o autocarro.
Do Porto para Lisboa a viagem foi desinteressante e dormitei. Cheguei com a marca do cheiro a viajante, ansiando por descanso. Até à volta caminõ!
[1] Designação galega para uma espécie de tapas oferecidas com o consumo de bebida. Em Cee fomos agraciadas com esta tradição num café restaurante local que nos servia uns deliciosos ‘pinchos’, que bem podiam ser uma refeição gourmet a custo zero, acompanhados por belas taças de vinho branco Ribeiro.
Isabel Passarinho