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Crónica Social - Os Zés-Ninguéns



Quero falar de muita coisa e tenho pouco tempo para organizar as ideias. Nada de novo. Na prática, inspirei-me num quadro de Cândido Portinari[1], num texto de Eduardo Galeano[2] e num livro de Yuval Harari[3] para falar de pobreza e construção social do valor humano.

Esta trilogia de ‘homens notáveis’ aconteceu (podia ser outra) mas diz bastante das ‘entradas’ de perspectivas que gosto de cruzar e que me dão contributos e modos diversos de encarar as questões sociais.

Esta crónica é necessariamente um breve rascunho que deixa mais à imaginação, do que diz.

Deixo sobretudo a certeza de que continuo com muito mais perguntas do que respostas sobre o que é isso de ser ‘alguém’ ou ‘ninguém’.


Zé-ninguém é a expressão popular usada para pessoa insignificante e é uma expressão que subsiste nos dias de hoje, reactivada por clivagens sociais muito acentuadas.

Caberá perguntar o que é isso de ser insignificante no século XXI? Insignificante para quem? Por quê? Que escala de valor é esta a que os humanos parecem submetidos?

O que atribui significado a uma vida, a uma pessoa?

Será a conformidade ou não-conformidade à norma social instituída? Será ter nascido, ou viver, no lado errado do mundo, ou da cidade, ou do país?

Serão a ausência de sinais exteriores (e interiores também) de saúde financeira ou de capacidade de endividamento, o que vai dar a lugares parecidos. Será não ter trabalho? Será não ter número de segurança social, de finanças, de conta bancária, de cartão de crédito? Será não ter casa e carro? Será não vestir roupa na moda?

Será não ter educação, instrução e capital cultural?

Será não ser apto para ultrapassar circunstâncias de partida e/ou de percurso? Será não ter tribo?

Será não ter notoriedade nem estima no grupo mais privado? Será o sentimento de não ser amado por quem se é?


Na prática e, não obstante a melhoria das condições de vida e o crescimento do consumo em algumas zonas do globo, fizemos poucos progressos na distribuição dos recursos disponíveis e no aumento do bem-estar da população mundial.

Se como diz Harari (2017) nas últimas décadas conseguimos dominar a fome, as epidemias e a guerra, parece certo que o que subsiste destes fenómenos (e subsistem em elevado grau) tem sobretudo a ver com opções políticas. Já quando Bismark introduziu as pensões do Estado e a Segurança Social na Alemanha do final do século XIX, o seu objetivo principal era assegurar a lealdade dos cidadãos, muito mais do que o bem-estar.

‘Os mesmos instrumentos que permitem aos médicos identificar e curar novas doenças de forma célere também poderão permitir que exércitos e grupos terroristas desenvolvam doenças ainda mais terríveis e agentes patogénicos apocalípticos. É, portanto, provável que as grandes epidemias continuem a ser um perigo para a humanidade apenas e se for a própria humanidade a criá-las ao serviço de uma qualquer ideologia cruel. É possível que os tempos em que éramos impotentes para enfrentar epidemias naturais tenham chegado ao fim, mas ainda poderemos vir a ter saudades desses tempos” (Harari, 2017:24)


Tempos de medo.

São muitas questões como estas que me afloram o pensamento quando vejo embandeirar em arco metas de ‘luta contra a pobreza’ que décadas, após décadas, propõem a sua erradicação e fazem festas cheias de figuras públicas para falar do assunto. Enquanto o dia-a-dia dos pobres continua igual. Enquanto a expectativa de melhorar de vida diminuiu. Enquanto se acentuam desequilíbrios de rendimento, trabalho, direitos, com doenças e guerras um pouco por todo o planeta. Por cá, e no resto da europa, as sociedades envelhecem e as expectativas de bem-estar diminuem.





Convencionou-se chamar a era da humanidade ou Antropoceno aos últimos 70 mil anos em que o Homem se tornou no mais importante agente transformador da ecologia global.

Se pensarmos que o surgimento da vida na terra está identificado como tendo ocorrido há cerca de quatro mil milhões de anos, tomamos consciência de que o homem realizou uma transformação imensa num espaço de tempo muito curto.

O que dá um certo medo de nós próprios.


Termino com Galeano[4] que escrevia assim sobre os ‘ninguém’:

As pulgas sonham com comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico a sorte chova de repente, que chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chove ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.

Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada. Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos: Que não são, embora sejam. Que não falam idiomas, falam dialectos. Que não praticam religiões, praticam superstições. Que não fazem arte, fazem artesanato.

Que não são seres humanos, são recursos humanos. Que não tem cultura, têm folclore. Que não têm cara, têm braços. Que não têm nome, têm número. Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local. Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.



Isabel Passarinho




[1] Candido Torquato Portinari (1903-62) foi um dos mais prestigiados pintores brasileiros.

Filho de imigrantes italianos, revela precocemente o seu talento artístico de forma inata. Posteriormente estuda pintura e destaca-se no Brasil e na Europa, obtendo um reconhecimento internacional. Revelou um interesse social profundo e conseguiu retractar questões sociais aproximando-se da arte moderna europeia sem perder a admiração do grande público. Aproxima-se do cubismo, surrealismo e dos pintores muralistas mexicanos, sem se distanciar totalmente da arte figurativa.


[2] Eduardo Germán María Hughes Galeano (1940-2015) é considerado um dos mais destacados artistas da literatura latino-americana.

Nasceu no Uruguai, numa família católica, classe média-alta. Teve muitos e variados trabalhos como operário, carteiro, pintor, mecanógrafo, caixa de banco, entre outros. Começou a sua carreira como jornalista em 1960 como editor de um semanário influente que tinha colaboradores de renome como Mário Vargas Llosa ou Mário Benedetti. Estudou em Paris e lutou contra a ditadura de Perón. Teve um percurso activo e reconhecido internacionalmente como jornalista e escritor, com posições marcadamente de esquerda.


[3] Yuval Noah Harari é um autor contemporâneo especializado em História Mundial e processos de Macro-História. Tem um percurso académico notável na área da História. Fez doutoramento em Oxford em 2002 e ganhou duas vezes o Prêmio Polonsky por Criatividade e Originalidade, em 2009 e 2012, entre muitas outras notoriedades.

Nasceu em Israel, filho de judeus com raízes na Europa Oriental e vive com o marido, perto de Jerusalém.


[4] Eduardo Galeano, no livro “O livro dos abraços”. Tradução Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 2002

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