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Crónica Social - Venda da Esperança[1]

Agosto vai no fim e fazem-se as despedidas do mês mais emblemático das férias portuguesas. Festas tradicionais em cada terrinha um pouco por todos os adros de igreja, os festivais, as gentes a escorregar para um Algarve comercial e sobrelotado de aparências, o chinelo no pé, os emigrantes que matam saudades do que nunca foi, as crianças, os jovens e os pais libertos das escolas, estravagâncias exóticas para alguns, tempo de paz para outros, intervalo nas rotinas e nas labutas… Liberdade paradoxal para quase todos.


Em tempos de excesso, preocupamo-nos em rejeitar e eliminar.


Como nos acontecimentos em Charlottesville que legitimaram o ódio. A onda Trumpista cria uma abertura para vozes que pensávamos ultrapassadas, mas que estão aí por todo o mundo, saindo do armário com uma confiança inusitada. Que fazemos com isto?


Já em 1945, Karl Popper falava do Paradoxo da Tolerância defendendo que a tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância… mas como recuperamos, como construímos sociedades tolerantes?


A comunicação generalizada e a sobre informação ameaçam todas as defesas do ser humano. A violência das redes e do mundo virtual é uma violência viral, a violência do aniquilamento suave, uma violência genética e comunicativa. Esta violência do consenso é viral, na medida em que opera por meio do contágio, da reacção em cadeia e da eliminação de toda e qualquer imunidade.


Quem o diz é um professor de Filosofia chamado Byung-Chul Han. Este homem, que nasceu em Seul um ano antes de mim, foi para a Alemanha com 20 anos, estudou Filosofia e Teologia e hoje ensina Filosofia na Universidade das Artes de Berlim.


Li um livro seu chamado ‘A Sociedade do Cansaço’. Nele desenvolve a tese de que a sociedade de produção e de atividade produz um cansaço e esgotamentos excessivos.


Ele fala do panorama patológico do século XXI onde, entre outras dimensões, o Multifuncionalismo tão apregoado (todos temos ‘obrigação’ de ser flexíveis e saber de tudo) é apresentado como uma regressão aos tempos em que os animais para sobreviver tinham de desenvolver técnicas de atenção constante. Uma atenção dispersa, ampla e pouco profunda com mudança brusca do foco de atenção. Uma atenção que hoje serve sobretudo para reproduzir e acelerar o que já existe.


A violência neuronal que degrada a saúde mental aponta para um excesso de positividade. Um curto-circuito do Eu que se funde num processo de sobreaquecimento provocado por um excesso de idêntico – veja-se o funcionamento do facebook, por exemplo, onde um algoritmo nos serve conteúdos pré-seleccionados dentro da nossa esfera de interesses.


- Bit coins? O que diabo é bit coins?


Segue-se uma explicação sobre a moeda virtual, a alternativa entusiasmada ao sistema bancário oficial e a liberdade que os cidadãos têm de fazer operações financeiras, não taxadas e anónimas, em todo o mundo. Se serve para lavar dinheiro e para os senhores da droga, não faz mal. Porque também serve para o jovem que sabe de computação e que conhece os níveis encriptados (pelo menos alguns) da net para fazer compras, fazer transacções numa espécie de ‘bolsa’ e ganhar bit coins cedendo espaço em computador privado.


“O novo tipo humano, que indefesamente se encontra entregue ao excesso de positividade, não comporta qualquer tipo de soberania. O homem depressivo é o animal laborans que se explora a si mesmo, de forma voluntária, sem necessitar de pressão ou coacção alheias. Ele é agente e vítima ao mesmo tempo. (…) O sujeito produtivo está em guerra consigo mesmo. O homem deprimido é o inválido desta guerra interiorizada. A depressão é a doença de uma sociedade que sofre de excesso de positividade e reflecte uma humanidade em guerra consigo própria”.


A histeria e nervosismo da sociedade moderna da acção convivem com o tédio. O olhar que vagueia errante, volátil e fugaz, apenas com capacidade de se fixar em écrans com mensagens curtas e imagens aceleradas.


Byung-Chul Han recupera a Pedagogia da visão, de Nietzsche, fazendo a apologia de que são necessários educadores para ensinar a ver, a pensar e a falar e escrever. Fala da necessidade de abrir a porta ao lento e ao moroso, de voltar ao dom da escuta, a uma atenção profunda e contemplativa, a uma serenidade especial para um não-fazer sereno.


Como nas pinturas de naturezas mortas holandesas do séc. XVII que reuniam diversidade de tudo.


Como na Venda da Esperança, terra actualmente sem graça virada para uma estrada com paralelepípedos mal cobertos de asfalto onde podemos imaginar a ‘venda’ que tinha um pouco de tudo, onde a tia Esperança sabia da utilidade do inútil e atendia com um cansaço inspirador.


Sagrado é o dia do não-fazer.




Isabel Passarinho


[1] Nome de localidade na Estrada da Beira (EN17) no Concelho de Oliveira do Hospital, Coimbra

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