Bonita, não é? Parte da banda sonora de The Quiet Man, do realizador John Ford, esta foi a última a coisa que o lendário realizador George A. Romero ouviu antes de falecer no passado dia 16 de julho.
Nascido, crescido e vivido em Pittsburgh, começou a fazer pequenos filmes aos 14 anos. Trabalhou, ironicamente, num programa infantil, Mister Rogers' Neighborhood, antes de se fazer ao mundo das publicidades.
Mas não durante muito tempo.
Ele e os seus amigos rapidamente se aborreceram. Inspirado por The Thing from Another World e The Tales of Hoffman, ambos de 1951, Romero decidiu aplacar a sede da indústria pelo bizarro, produzindo Night of the Living Dead em 1968: o filme seminal do género dos mortos-vivos.
Embora já tivessem aparecido em cinema e fizessem parte de lendas do Haiti, zombies eram sempre vistos como criaturas controladas através de voodoo ou outros tipos de magia negra.
Romero, inspirado pelo livro I am Legend de Richard Matheson, acrescentou-lhes os elementos que, mais tarde, se tonaram clássicos: a contaminação e a fome por carne humana... Romero não utilizava os mortos-vivos como o ponto de foco da sua acção, mas sim como maneira de explorar a profundeza das atitudes humanas quando confrontados com uma situação tão extrema.
“O que me interessou foi o facto de que algo completamente diabólico está a acontecer, e as personagens só discutem quem é que está no comando. (...) O mais importante num filme de terror é a história. Gore é uma chapada na cara, nada mais.”
O baixissimo orçamento do filme (pouco mais de 100 mil dólares) levou a que o realizador assumisse um estilo cru e primitivo, praticamente documental. “Um documentário sobre um pesadelo”, chamaram-lhe. E esse pesadelo estava a ser vivido nos E.U.A. com o Vietname, a morte dos irmãos Kennedy e, principalmente, o assassinato de Martin Luther King Jr., a consciência americana estava envolta em paranóia e alvoroço.
“O papel principal, Ben, foi escrito como sendo um homem caucasiano. O facto de o Duane Jones ser negro nada teve a haver com o facto de ter sido escolhido: ele simplesmente era o melhor ator que conhecíamos. E o argumento manteve-se igual depois disso.”
Intencionalmente ou não, Romero conseguiu, na altura certa, tocar na ferida que se estendia por toda a nação. O comentário racial implícito ainda hoje é o foco da maior parte dos elogios feitos ao filme. Aliás, este é um elemento que se mantém em toda a sua obra. Dawn of the Dead, 1979, é um comentário mordaz ao consumismo americano. Em Day of the Dead, 1985, o realizador expressou a sua desconfiança nas politicas de Ronald Reagan. E em Land of the Dead, 2005, apontou a gentrificação como modo de segregação social e geográfica.
Palavras grandes para um género que no presente serve apenas como pano de fundo a “novelas” sem a profunda sátira social do seu mestre original.
“Fui convidado para realizar uns episódios de Walking Dead mas recusei. A série não representa nada daquilo em que acredito. Agora tens que ter um budget gigante para o público querer ver os teus zombies. Eu só gostava que se perguntassem onde estão os verdadeiros monstros. (...) Não sei onde o género vai parar, mas espero que não coloquem como objectivo rebentar com a barreira orçamental de 200 milhões de dólares ou assim.”
World War Z, 2013, foi o maior filme de zombies de todos os tempos. Teve um orçamento de 190 milhões de dólares.
Uma série e um filme que deambulam de um lado para o outro, contaminados com as ideias visuais de um cinema “meio-morto”, sem tentarem qualquer tipo de reflexão perante as tribulações da atualidade mundial. Estará o próprio género a ficar zombificado?
Romero acreditava que este tipo de filmes deveria ser propicio a experiências de baixo custo: uma maneira de proporcionar a utilização de monstros “fáceis de fazer” em histórias bem construídas. Exemplo disso? Shaun of the Dead, 2004. O seu realizador, Edgar Wright, utilizou apenas uma crítica no poster promocional:
Por isso não: o género não está a ficar zombificado. Está sim a contaminar multidões, sendo que apenas os escolhidos, os verdadeiros amantes de cinema, é que lhe dão vida. Aqueles que têm a habilidade de ver para além dos efeitos especiais e gore gratuito. Os outros? Os outros deambulam por aí, à espera da próxima vítima.
George deixou prontos 4 argumentos que o seu assistente, Matt Birman, já admitiu vir a realizar ele próprio. Por isso, e por todo o ghoul que aparece em televisão, cinema e convenção, Romero nunca morrerá.
Diogo Simão