Para quem mora lá, o céu é lá[1]
Conheci por dentro a vida de bairros ditos degradados. Trabalhei em alguns numa altura da vida em que acreditei que seria possível reverter processos de vulnerabilidade individual e comunitária. Hoje entendo que são territórios muito convenientes para concentrar os ‘males sociais’, para ocultar alguns negócios que funcionam à margem da lei e são geridos por grandes poderes, para justificar o tecido institucional, os empregos técnicos, o mercado de boas intenções e as salvações de alma. Geralmente são territórios de má fama, constituídos por barracas, casas improvisadas ou prédios de promoção camarária. Locais sitiados, sujos (por regra a limpeza urbana é menos frequente do que a que é feita em zonas não estigmatizadas), ilhados, fechados sobre si mesmos e isolados da restante malha urbana - de facto ou simbolicamente, o que vai dar ao mesmo.
Aprendi que vive lá gente de bem e de mal, como em muitos outros sítios. Só que mais circunscritos.
Os negócios marginais e os percursos criminais são ingredientes do estigma que marca estes locais. Outros ingredientes são a proveniência de minorias étnicas, a violência, a pobreza, o desemprego, as dependências, a degradação física e humana. O facto de serem locais com controlo próprio também conta – ‘ninguém sai, nem entra, sem que se saiba’. Para cada elemento do estigma que recai sobre estes bairros e as suas populações poderia lembrar semelhanças com os bairros antigos das cidades ou com as aldeias mais recônditas. E mesmo assim eles seriam territórios diferentes.
Locais ‘debaixo do tapete’ para os municípios que querem esconder os problemas. Locais-represa para conter fenómenos sociais com os quais é difícil lidar – a imigração, os negócios ilegais, a falta de habitação condigna, a pobreza, …
Locais-casa para quem lá nasceu e viveu, para quem tem lá a família e os amigos, em ruas que são o prolongamento das casas e onde se vive parte da vida. Locais-abrigo para negócios que não nascem lá, mas que dão sustento e ficha na polícia, justificam brigas, mortes, rusgas e prisões. Locais-mundo porque frequentemente juntam pessoas de muitas origens diferentes, com proveniências e costumes diversos que têm de aprender a conviver, ou a coexistir, em espaços contidos. Locais-dormida para uma parte dos moradores que usa a casa como estação de serviço (para recolher, abastecer e descansar) antes e depois de voltar ao trabalho como em qualquer outro lugar urbano ou suburbano. Locais-convívio para quem alimenta as sociabilidades de rua, tanto as marginais como as festivas, mas onde sobrevivem espíritos comunitários e laços de entreajuda. Locais-fortaleza com histórias velhas como castelos, que atraem e repelem, com personagens que assustam e que alimentam famas, e também a exclusão generalizando atributos negativos.
Estas facetas não descrevem a diversidade e a dinâmica destes territórios, cada um diferente do outro, organismos vivos, que permanecem e mudam todos os dias. Com tanta gente boa, solidária, trabalhadora, melhor e mais bem-educada que muitas pessoas instruídas e muito classe média que acham que os moradores destes bairros são todos ladrões, vadios, criminosos e plantam hortas na banheira.
Não estou a defender que são territórios cor-de-rosa, só com pessoas de boa índole. Nem nos bairros sociais, nem nos condomínios fechados luxuosos é possível segmentar desta forma. Provavelmente porque a natureza humana está para além da proveniência sociocultural, da instrução, do tipo de trabalho ou da conta bancária. Têm problemas sim. Muitas vezes têm mais problemas do que outros locais de morada não estigmatizada.
Também porque são territórios fáceis para que alastre a criminalidade e os negócios marginais – introduzidos e geridos por outros que não moram nestes bairros. Porque a pobreza está concentrada, porque existem redes de relação e vizinhança que perpetuam os problemas, porque os serviços são inábeis para entender e ajudar a reverter muitas das situações. Porque, na ordem social instituída, parece menos mal que existam ‘bolsas’ que concentrem os problemas em vez de os espalhar pela malha urbana – ‘querias tê-los por vizinhos?’ – é a pergunta-argumento que remata conversas.
Isto a propósito da onda de populismo que, também por cá, encontra protagonistas, apoiantes e bodes expiatórios-policias que alegadamente espancam e são movidos a ódios xenófobos, candidatos a cargos públicos que se permitem dizer que expulsam os ciganos…
Não vale andar para trás, num mundo-casa com tantos problemas para resolver.
Isabel Passarinho
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[1] Nome de uma exposição feita em Portugal pelos Gémeos. Os artistas brasileiros Gustavo e Otávio Pandolfo têm uma obra espalhada por todo o mundo que parte de realidades fragilizadas e remete para um mundo fantástico, preenchido de histórias do quotidiano às quais dão uma forma poética.