Desempenhamos papéis na vida. Com maior ou menor facilidade. Uns mais constrangidos do que outros pelas normas sociais e pelas expetativas que achamos que temos ou que os outros têm para nós.
Às vezes a Persona[1] pesa-nos e temos vontade de a abandonar, de nos livramos dela.
Outras vezes cola-se à pele como se fosse outro ‘eu’. Sente-se uma espécie de urgência em despir os papéis sociais que desempenhamos ao longo da vida. Uma compulsão para ligar partes que aprendemos a separar. Uma reapropriação de nós, com uma inteireza desconhecida que atrai sem saber muito bem porquê. Ou o inverso. Um refúgio na Persona que nos habituámos a usar e através da qual somos reconhecidos e gratificados.
Aurora está no terceiro dia de descompressão. Oficialmente de férias. Deixa as horas escorregar com um pesado sentimento de ineficácia.
Toma nota na agenda de alguns assuntos adiados que aproveitou para tratar. Vê programas parvos na TV e passeia-se pelo correio eletrónico e pelo facebook, selecionando algumas questões que parecem mais urgentes ou importantes. Muitos outros assuntos teria a tratar mas não lhe apetece.
Tenta integrar a tragédia das mortes de Pedrogão Grande. E vai-se embora.
Aurora procura o efeito-distância que costuma fazer milagres pelos seus dilemas.
Vai passar uns dias numa geografia bonita que já foi guarida em alturas de tomar outras decisões e recurso para alturas difíceis. Sente-se enevoada, embrulhada nos seus boicotes. Quinhentas mil razões para tomar decisões que se impõem e outras tantas para não o fazer. Fica parada. Rotinizada. Está refém dos seus argumentos e contra-argumentos. Nem se reconhece.
O que é essencial e o que é acessório?
Como é que consegue destralhar a vida? Como deixar para trás o que já não faz bem, o que não lhe faz bem e o que não tem remédio?
Como é que se orienta a vida numa direcção que julga querer?
E como é que não se perde a direcção em velocidades loucas?
Aurora sabe que não quer o turbilhão actual da sua vida. Não quer sentir-se engolida por dias que desaparecem. Não quer gastar toda a sua energia no trabalho. Por mais que seja um trabalho com pessoas dentro e mesmo que faça por fazer a diferença na vida das pessoas que passam por si, ajudando-as a construir ou a recuperar um maior bem-estar. Sabe por experiência própria que só faz falta quem está.
Por mais que faça, por melhor que tente fazer, sabe que tudo continua sem si – de maneira diferente, será certo, mas tudo contínua.
Pergunta-se: E se eu não acordasse amanhã?
Recorda (sempre) o seu marido que morreu de repente, durante o sono, uns dias antes de fazer 50 anos. E tem medo. Medo por si e pelas filhas. Porque apesar das maioridades já perderam o pai e Aurora sabe que não é fácil viver com a orfandade. Gostava de as acompanhar durante mais uns tempos nas suas diferentes etapas de vida.
Convoca um a um, todos os seus amigos e família, para concluir que todos seguiriam a sua vida. Naturalmente. Como ela própria sobreviveu a mortes próximas e seguiu a sua. Gosta de acreditar que os mais chegados lhe sentiriam a falta e a recordariam com carinho, mas a vida continua. Não é assim que se diz?! Só para quem parte é que não se sabe.
Apesar da morbidez, Aurora ainda quer algumas coisas da vida. Nada de muito original, mas ainda assim: (i) quer aprender a viver mais devagar; (ii) quer pintar, escrever e cozer; (iii) quer conhecer, pelo menos um neto, ou neta, para comprovar se é tão bom quanto dizem; (iv) quer fazer mais algumas viagens; (v) quer sobretudo encontrar a sua paz e o seu lugar no mundo.
Quer aprender a desapegar-se. Despir a persona, a pele de profissional que se colou a ela. Ser apenas pessoa. Com todas as suas fragilidades e os seus medos.
- Nós aqui tratamo-nos todos por tu. O que é que sabes fazer?
- Cozinha? Sabes fazer comida vegetariana? Então vem que precisamos de ajuda na cozinha.
[1] Palavra derivada do latim que se referia originalmente a uma máscara teatral. No sentido comum, designa um papel social ou uma caracterização feita por um actor.
Isabel Passarinho