Laura tinha tudo. Quase tudo aquilo que se pode ter.
Uma família bonita, com dois filhos maiores e uma neta pequena. Um marido espectacular, companheiro de uma vida e apaixonado por ela como no primeiro dia em que se conheceram. Tinha dinheiro, casas e um cão de marca. Era uma empresária de sucesso, com lojas de decoração e o negócio a correr bem. Mérito seu, que começou como costureira exímia e foi somando serviços atrás de serviços, até ter uma saudável empresa.
Ela é que não era saudável. Tinha uma doença de nervos como se diz por lá, uma história com várias depressões, umas mais negras e prolongadas do que outras. Tinha o peito cheio de lágrimas secas que só saiam esporadicamente em jeito de infecção do saco lacrimal, sem emoção.
Dores e sofrimentos soterrados, antigos e recentes, tinham secado a possibilidade de drenar a tristeza - ‘Não há melhor remédio para a tristeza do que chorar (Santos, 2000, p.32).E isso ela não conseguia. Nem chorar, nem rir. O leque de emoções que se permitia era muito estreito. E agora? Como recuperar aquela menina que tinha chorado tanto quando, no fim da 4ª classe não teve possibilidade de continuar os estudos (a Professora ainda intercedeu junto da família) porque morava numa aldeia e não havia como custear a ida para uma escola mais longe? Como reencontrar aqueles anos em que chorou tanto pelos desatinos de um dos seus filhos?
Como integrar a sua orfandade? Como?
O dia-a-dia continua a exigir equilíbrios que, às vezes, Laura não tem.
Alegrava-se com a cabeça por a Geringonça funcionar, em contramão com o que de pior se passa por esse mundo fora. Sabia que Portugal está na moda mas sabia também que as modas são efémeras. Sabia que a voracidade do tempo e a fome de novidade faz encolher os prazos de validade e as notoriedades.
Mesmo assim aderiu à onda de ‘peito cheio’ que assolou recentemente Portugal – o Papa Francisco veio a Fátima, o Benfica foi tetracampeão e o Salvador Sobral venceu o concurso da Eurovisão. E tudo a 13 de Maio para reforçar a mística nacional. Por uns tempos foi menos fado e intervalou a pequenez e uma certa pena de si própria. Acreditou que ‘podia’, trouxe à tona o lado heróico e baixou a polaridade desesperançada. Mas existe muita coisa que lhe faz confusão.
Nomeadamente uma moda que começa a banalizar a extinção das profissões. Logo agora que a sua filha é doutora. Licenciada em Fisioterapia por uma Escola Superior conceituada e apaixonada por aquilo que faz - muito embora em rigor não consiga viver do que ganha e ela ainda tenha que ajudar com uma mesada para que a filha mantenha um certo estilo de vida. Laura não tem muitos estudos mas é inteligente e informada. Por isso mesmo, pergunta-se que ideia é essa de defender que se devem educar e formar os jovens para que fiquem com um mapa de competências transversais (parece que é assim que se diz)? Entende a importância da criatividade, flexibilidade, comunicação, gestão de prioridades, resolução de problemas complexos, pensamento crítico, inteligência emocional, negociação, entre outras mas mesmo assim, sem profissão, de que servem? Modéstia à parte Laura acha que utiliza essas competências para gerir o seu negócio, mas sabe que é Costureira de profissão. Foi isso que ela aprendeu e que sabe fazer com maestria.
Lembra-se da geração dos seus pais e dos seus avós. Uma ruralidade pobre onde para ganhar o sustento e criar os filhos, era necessário aprender um pouco de tudo. Lógicas de auto-subsistência (comprava-se o mínimo), onde os ofícios se aprendiam com mestres, em trajectos de experiências muito diferentes entre homens e mulheres. Os meninos aprendiam ofícios de agricultor, padeiro, construção civil (pedreiro, electricista, canalizador…), sapateiro, marceneiro; e as meninas aprendiam as artes ligadas ao universo doméstico – o cuidado dos outros (crianças, velhos e doentes), a cozinha e a costura.
Com a mobilidade social que Abril permitiu, Laura achou que já não era tempo dos faz-tudo. Havia condições para as crianças estudarem e tirarem cursos superiores, para se especializarem, para só saberem do tempo dos seus avós e bisavós pelos livros de história. Laura sabe que na actualidade não existem sectores de actividade imunes à turbulência económica e que o facto de existir sucesso profissional e empresarial numa determinada época não é preditor de futuros prósperos. Sabe que as profissões são mutáveis, porque dependem de conhecimentos e circunstâncias também elas evolutivas e que muitas se extinguiram ao longo dos tempos porque se tornaram obsoletas ou foram substituídas – lembra-se que o seu avô era Abegão e essa é uma profissão que já não existe.
Sabe que os sistemas de aprendizagem profissional, dos mais académicos aos mais experienciais, não parecem capazes de garantir o ingresso, nem a manutenção nos respectivos campos profissionais. Sabe que as reservas corporativas, com algumas excepções, pouco têm conseguido na defesa das respectivas profissões e profissionais. Sabe que existe muito desemprego e que mesmo existindo algum emprego, muitos postos de trabalho perdem conteúdo funcional e humano, perdem sentido. Sabe que os taxistas são substituídos pela UBER, os advogados pelo ROSS (que é o primeiro advogado de inteligência artificial do mundo, produto da IBM) e que nem os médicos escapam ao avanço dos sistemas de inteligência artificial, divulgados como muito eficazes no diagnóstico de doenças.
Só não sabe como voltar a chorar. Nem porque raio voltaram os faz-tudo.
Isabel Passarinho