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Crónica Social - Make Over



Nos meus momentos mais depressivos fico a ver televisão. Como se fosse um remédio para me desligar, para não ter hipótese de processar informação.


Adoro programas de make over. Tudo o que se possa imaginar, das mudanças na aparência de imagem, passando por escolhas de vestidos de noiva, até toda a espécie de construção e reconstrução de casas e jardins. Fico ali, quieta, a consumir imagens de ´antes´ e ´depois’, em mudanças realizadas por especialistas e com finais felizes – uma espécie de contos de fadas dos dias de hoje onde se faz acreditar que tudo é passível de ser melhorado através de uma mudança feita de fora para dentro. Tão diferente do que defendo e faço por praticar na minha vida. Mas tão bom de acreditar!


Pensar na vida é um luxo filosófico pouco compatível com "ganhar a vida", mas ainda assim possível. Paradoxalmente às vezes apetece não pensar. Estas "transformações" de imagem podem ser mera cosmética, para mascarar e esconder imperfeições, mas também podem ser momentos gratificantes de bem-estar e de superação de qualquer coisa, ou em que outros ajudam a ultrapassar uma dificuldade instalada. Ou ainda o início de uma transformação muito maior e mais duradora - depende tanto. Apesar destas estratégias poderem agir como mecanismo de compensação pelo consumo, de alheamento em dose excessiva. Como o açúcar. Agradável mas perigoso para a saúde - é difícil não tomar a parte pelo todo.


A própria natureza parece programada para fazer o seu Make Over e depois do despojamento do inverno, a primavera vem cumprir a promessa de renovação de ciclos e esperanças. Em beleza. Nos ciclos de vida humana os marcadoras são diferentes das estações do ano e as mudanças são menos previsíveis. Na maioria das situações, as transformações precisam de se fazer acontecer. E, como escreveu Kafka, as metamorfoses doem.


Trabalho com pessoas para quem a relação com o trabalho, ou o não-trabalho, assume centralidade. Parece-me que quanto mais incerto o trabalho se torna, raro, insatisfatório e incapaz de garantir sustento e realização, mais central se torna. O mito de Sísifo ainda diz alguma coisa sobre uma relação sem saída, condenada à repetição e ausente de significado; mesmo quando já não existe a "pedra" para empurrar pela encosta acima, como nas dores reflexas. Em vidas humanas marcadas pelo trabalho, por coisas que têm de ser feitas, mesmo que não se perceba porquê ou mesmo que as motivações e as recompensas sejam escassas, a possibilidade de renovação anda mais afastada. Fala-se de aguentar, de justificar "a sorte" de ter emprego, de prosseguir. Sem saber muito bem para onde, ou porquê. Ou sabendo.



Faz-se de forte e funcional e estruturado e proactivo e resiliente. Depois fica-se triste aparentemente sem razão ou com excesso de razões. O entusiasmo fica esquecido no fundo de gavetas desarrumadas. Crescem angústias trepadeiras com trabalhos "demasiados" que vão asfixiando sonhos. Trocam-se roupas quentes por outras mais frescas e adia-se resolver o assunto que incomoda. Leva-se o almoço e contam-se os trocos. Ainda não é esta semana que se faz a compra adiada. Engana-se a rotina com distracções, pequenas conversas e consumos de loja do chinês ou de griffe, conforme.

- Se eu pudesse fazer diferente, o que faria? Não sei…Não sei mesmo.


Nas leituras que faço duma coisa incerta a que se costuma chamar realidade ainda estou muito presa a dicotomias clássicas: o bem e o mal, os ricos e os pobres, os doentes e os sãos, os cultos e os incultos, os velhos e os novos e por aí fora. Esquecendo, por vezes, que entre estes extremos existe espaço e possibilidades.


Em vidas humanas marcadas pelo não-trabalho, o isolamento, a falta de recursos e de estima, de estímulos, de sentimentos de reconhecimento social e de uma agenda preenchida, não existem Primaveras. Fala-se de não "servir para nada", de "não ter valor nenhum". Com zangas, mais ou menos camufladas. Sobem névoas que obscurecem vontades e determinações mais ou menos. Deixa-se crescer a barba e embranquecer o cabelo. Habitua-se a óculos com lentes partidas coladas com UHU. Fica-se em caldo de amargura e revolta. Pede-se. Aprende-se a ser humilde, desespera-se, experimentam-se ambivalências de voltar ao último trabalho que se detestou, à previsibilidade de uma agenda preenchida e a um salário.

- Se eu pudesse fazer diferente? Porque teria que ser diferente? Porque não posso voltar a ter um emprego como dantes?


Uns e outros. Nós e eles. Todos. Desesperos. Histórias reais. Histórias de faz de conta. Angustias. Fantasia. Solidão. Verdades, com muitos lados.

- Qual é a minha verdade?


Isabel Passarinho

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